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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A velha e o relógio...

               
 Ela mesma fez uma pátina para clarear a madeira que antes era escura. Só não conseguira diminuir um pouco do dourado daqueles pêndulos, mas ia pensar numa maneira. Se pudesse, na verdade, trocaria de pêndulos! Aquilo parecia grande demais e desajeitado, como se não combinasse com o restante do objeto. E era um grande objeto. Grande e bonito, precisava reconhecer. O relógio não podia passar desapercebido. Aliás, todas as mulheres da família, por um motivo ou outro, já o haviam imaginado em suas salas, fazendo parte, talvez um dia, de sua decoração. Menos ela. 
No entanto, lá estava a olhar para ele, não na sala, mas no quarto que reservara para a estante de livros e o computador. Era o cômodo da casa onde passava grande parte do tempo, agora que não ia mais fazer companhia para a velha senhora. Sim, no último ano, tinha ido lá muitas vezes e, numa delas fora pega absorta a olhar para ele e confessara que o achava bonito. A outra concordou com um sorriso misterioso, talvez de orgulho por possuir aquele bem de família antigo e cheio de história. Mas Anna não ligava para antiguidades e gostava pouco de relógios. Depois que fizera cinquenta anos, de repente tinha se dado conta de que o tempo passara depressa demais e que parecia ter perdido metade do sentido, após aposentar-se. Não só às mudanças de residência e cidade precisou adaptar-se naqueles dois anos, mas também a outras, em si mesma e na vida. Sabia que a vida se fazia de movimentos constantes mas, desta vez estava encontrando mais dificuldade para adaptar-se do que de costume. Em compensação, começava a conhecer melhor a dona do relógio. 
Não tinha certeza ainda se era mesmo boa como parecia ser algumas vezes, se era ingênua ou dissimulada. Entretanto, ultimamente sentia-se bem ao lado dela e admirava sua capacidade de adaptar-se às dificuldades usando alguma criatividade e resiliência. A dona e o relógio se pareciam. Após mudanças ou choques conseguiam voltar a um estado de calma eficiência, temperada com resignação, não como vítimas mas com disposição orgulhosa diante da aceitação dos fatos. Foi com imensa surpresa sua e dos outros que Anna soube ter sido a escolhida para herdar o tal relógio de família - ela deixara escrito. 
Até que ele não ficava mal ali. Era uma peça imponente, cujo coração não falhava nunca, como lhe dissera a velha, ao se referir a ele. 
-Jamais atrasa minha filha, a não ser naquela semana em que o finado...
E lá vinha uma história daquelas que só quem tem fé acredita. A viúva tinha fé. Jurava que o relógio, herança  deixada por sua mãe, nunca havia atrasado a não ser quando seu marido morreu. 
- Este holandes tem bom coração. Mais forte do que o do meu marido. 
Mais forte até do que o dela, da velha senhora que se fora recentemente. Não era sua mãe, apenas a tratava de filha, de vez em quando. Era modo de falar, pensou. Ela não tinha motivo para gostar de mim, mais do que eu dela e afinal, pouco tempo convivemos, apenas nos últimos dois anos depois que vim de São Paulo para cá. 
Está certo que viam-se muito, quase todo final de semana, pois assim estava acostumada aquela família - a reunir-se para tomar lanche aos domingos, para falar de bobagens ou da vida alheia. Até em dias de semana acontecia de vir alguém para um cafezinho. Disso ela gostava muito e depois que a velha ficara doente, ia visitá-la para este rápido cafezinho, uma vez ou outra. Foi numa destas idas nos finais de tarde, que se apercebera de que gostava do jeito carinhoso da velha falar consigo e principalmente de mostrar que estava disponível para ouvir. Ela, no entanto, não falara nada, pelo menos nada de muito íntimo, nenhuma confissão ou confidência, embora tivesse sentido vontade uma única vez. Controlou-se a tempo, no que fez bem porque não sabia até que ponto teria ido. Melhor então ficar quieta. E a velha tinha sido a primeira pessoa que a deixara à vontade para ficar quieta,mesmo estando presente. O silêncio para elas não era sinal de solidão. 
Por vezes a calma no coração de Anna era abalada, como um lago tranquilo cortado pelo risco espumante e claro de uma lancha veloz, quando ouvia uma revelação. E revelação era a verdade que sempre estivera lá, camuflada, e subitamente brilhava à luz do sol quase a ponto de cegar a visão. Como naquele dia em que ia ajudando a limpar a mesa suja de café por uma mão trêmula que o servia e ouviu: 
- A velhice chega para todas nós que permanecemos aqui!
Tinha sido difícil acostumar-se naquela cidade interiorana, onde muitos sabiam da vida de quase todos. Cidade de vida simples, poucas academias, apenas um teatro e um único Shopping Center. Isto foi no início  
  porque logo ela descobriu a praça e os recantos à beira do rio, lugares para onde ela gostava de ir para ler e relaxar. Já estava mesmo cansada daquela correria da cidade grande, sentia-se meio deslocada como aquele pêndulo, como um coração que teme ser grande demais para a máquina que o contém.
  Olhou mais uma vez para o relógio. Se ela fizera companhia à D. Mariane foi por amor ao marido e solidariedade a uma mulher que a fazia sentir-se bem. Então porque o presente ? perguntou a si  mesma, desconfiada que era, por não ser muito habituada a demonstrações de afeto desinteressadas. E seria mesmo um presente aquele que, em sua parede marcaria sem parar a passagem do tempo e lhe lembraria da resistência, quando ela por vezes pensava em desistir? Talvez aquela velha fosse mais esperta que ingênua...
   Virou de costas decidida a ir tomar um cafezinho na cozinha. Nos ouvidos ficara o recado, o tic tac do relógio, o som que não falhava e fazia o que tinha de ser feito, marcando os passos do tempo...
Texto : Vera Alvarenga
Foto retirada do Google.

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