quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Reflexos.

Por um breve instante ela teve uma visão do todo. E era belo o que viu. Viu o que eles eram - um só, naquela imagem ! Mesmo apesar das contradições, formavam um ser único em suas semelhanças e nelas se tocavam. Ele, estava em cima, concreto, com peso e embora cansado, vivo. Ela, em baixo, e apesar disto, mais etérea, leve, embora também cansada, viva. Ele, mais denso e firme. Ela, transparente a ponto de mostrar que sua sensibilidade podia faze-la tremer. Nos dois, a mesma determinação. Na brandura da alma, a mesma canção. No coração o mesmo desejo. Quando ela olhava para ele, via o céu, portanto, ele era um ser alado, e nele, ela reconhecia o que era divino. Quando ele olhava para ela... o que veria? Talvez mergulhasse nas profundezas da alma, em busca também do que poderia ser divino. Será mesmo que ele a via?

Ou iludia-se com a imagem e pensava tratar-se de si mesmo ?
Alguns disseram a ela que se tratava de um tipo de ilusão,como ocorre na paixão, apenas um reflexo. Ela não se importou. Ela sabia o que era para saber.
Mas um dia, tempo e natureza interferiram. E romperam o que em promessa, era uma doce visão que poderia ser talvez eternizada pelo pintor, pelos poetas ou por uma contadora de histórias. Separaram-se os que antes se tocavam e ao fazerem, pareciam um só. Um dia, a ventania trouxe folhas, galhos e o barro do barranco, e estas coisas turvaram a água, e o vento, e a chuva fina continuaram por dias fazendo ondas no lago. E não parou mais de chover. Então ela viu que não eram um. E ele viu que não era aquela imagem. O que era inteiro aos olhos dela, se dividiu. Os que olhassem naquela direção, jamais saberiam da imagem que ela viu, embora ela a guardasse em sua memória e no coração. Nenhuma fotógrafa jamais poderia mostrar ao mundo o quanto eram belos, juntos. Ao olhar para o céu, ela sempre se lembraria de tê-lo visto lá, portanto lembraria de suas asas. Como era etérea em seu pensamento, e livre, e leve, enquanto quisesse, levaria consigo a beleza daquela imagem e o seu simbolismo.
E ele, do que se lembraria ele?
Texto e foto do Cisne: Vera Alvarenga
Foto Castelo del Angelo- Itália retirada de um email recebido sem nomear o fotógrafo.


    

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A imensidão do mar...


Dar-se conta do amor que a gente tem dentro do peito é assim como ver o mar pela primeira vez e perceber sua imensidão. Primeiro a gente pensa que parece impossível que aquilo tudo não derrame pelas bordas do mundo, não invada o urbano e a natureza do outro que está próximo. 
A gente olha o vai e vem das marolas na areia que brilha a cada vez que o mar se retrai. Ele, que a hidrata e penetra. Ela, que o acolhe sem resistência. Ambos se tocam numa alternância de movimentos que pareceriam opostos, se não soubéssemos que são complementares. Como afago, carinho que faz à amante, o mar se estende grandioso e soberano sobre ela, sobre aquela que lhe dá suporte. Fica claro, neste momento, que ele é feito para banhar, alimentar, maravilhar aquele que descobre sua existência. O que vemos é o depois, depois deste ato de amor, depois que o amor toca a alma e a toma para si. É quando os dois ficam ali deitados apenas respirando, embora grande parte de si mesmos, ao mesmo tempo esteja fertilizando a vida, cada um em seu próprio elemento. Vemos o momento da intersecção dos dois elementos, onde seus limites se permitem penetrar, quando o amor e a alma a que pertence interagem e ambos se fazem um. Contudo, ele não a fertiliza diretamente, mas prepara o ambiente da amante para aquele que virá, um pescador, um habitante da aldeia ou talvez, da cidade.
Algumas vezes, este interlúdio, encontro do amor com nossa alma não é tão manso nem o ritmo é um “pianíssimo”. Quando as pedras estão em seu caminho e a paisagem se modifica, podemos ter uma visão diferente do amor que nos fertilizou. O mar batendo bravo contra a alma que está ali endurecida e não quer ceder, é uma das possibilidades. E a isto podem somar outros elementos da paisagem e da natureza, os ventos, tempestades e furacões. Então, o mar invade, num movimento de força indomável e incontida, muitas vezes furiosa, como reagindo a alguém que tivesse ousado pretender represá-lo ou mantê-lo em filtro de barro, com uma torneirinha para ser aberta só quando dele quisesse beber. Mar de verdade, não aquele das pinturas e aquarelas, vai buscando aquilo que era seu, o espaço que deveria lhe pertencer se não houvessem antes o invadido na maré vaza, ou negado sua existência só por não conhecê-lo. E, em algumas praias, temos visto que ele vem, cobre, engole, destrói até!
Ah! não é porque somos do interior, que podemos negar o que ele é. Um dia, mais cedo ou mais tarde a gente descobre que está mais perto do que supúnhamos. Ele está ali, dentro do peito, vivo, com capacidade para inundar de amor, perdão e afago, ou destruir. Ele é água, sentimento, emoção e procurará sempre o espaço que é seu. Não é possível represar a força de vida do mar, sua necessidade imperiosa de ser, sua pulsação natural. No entanto, podemos tentar conhecer aquilo que trazemos no peito. Eu, por mim, procuro manter-me numa praia mansa, onde haja espaço para deixar que se espalhe, pois um dia tentei contê-lo, e aprendi que isto não é viável.
Independente de eu ter escolhido amar o mesmo pescador, entre tantos, pela eternidade,
a paisagem neste tempo nunca seria a mesma e as marés se revezaram. Eu sei, assim é a vida para quem vive com o mar a seus pés ou dentro do peito. Um dia apanho conchas, deito na areia fresca e banho meu corpo, sentindo o sol brilhar em minha pele. Em outra manhã, logo após a maré cheia e a tempestade, verei destroços, galhos e algum lixo. O pescador pode ter se ausentado em viagens a procura de conhecer mares distantes, ou mesmo entrado mar adentro de seu peito até descobrir quem, afinal, habitava suas praias.
Mansa era minha forma de amar e embora tenha escolhido uma praia tranqüila para viver junto ao mar, um habitante de Nova York, náufrago de tempestade, trazido por inesperada corrente marinha, poderia aparecer de repente na praia idílica e quase deserta onde eu estava. E talvez se demorasse a descansar e observar as conchas, e a respirar a brisa do mar que conheço. O mar que, por seguir pulsando dentro do peito, iria fatal e naturalmente de encontro aquele que ao se aproximar demais, mostrou que trazia nos olhos o mesmo brilho da areia e de estrelas marinhas. 
Água do mar é viva. Não morre como estátua no cimento, não pode ser mal contida. Seu destino é fluir, banhar, encontrar-se com o limite que a receba. O amor dentro do peito, não pode ser represado. Mar também não. É desperdício não crer em sua capacidade de fertilizar a vida. Tolice imaginar que ao se recolher na maré baixa ele ficasse por lá, para sempre quieto, e não retornasse trazendo tesouros ou escombros de suas profundezas. Ele não obedece à nossa vontade, mas ao que está acima de nós, e pertence à nossa natureza.
Minha natureza é a daqueles que conhecem o mar, mergulharam nele de corpo inteiro e andaram anos com os pés tocando suas águas rasas e a areia, exatamente naquele ponto em que o amor e a alma se encontram, numa paisagem que se mostra diferente a cada dia, a cada fase da lua.
Portanto, procurar a praia onde possa de novo deitar com o amado e amar mansamente é instintivo, é o único modo de conter o mar, é reencontrar a paz e sentir, como no respirar dos amantes, o pulsar harmonioso da vida que se completa no movimento  daquilo que, neste ato, encontra sentido.
Texto: Vera Alvarenga
Foto: Priscila Pereira 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Minha visão de mundo...

Li, na semana passada o livro de uma jornalista, Saíra Shah, contando sua viagem ao Afeganistão e região, numa busca pessoal por suas raizes e mitos. Impressionantes relatos que ela faz de sua viagem, do que viu em meio às atrocidades das guerras (diferentes guerras,com diferentes motivos) e sôbre as mulheres e homens num mundo de cultura tão diferente da nossa, e tantas coisas mais. Na verdade, devorei o livro em 2 dias, porque ia dá-lo a minha norinha, no aniversário dela. Conheci o mundo que ela descrevia, através do olhar dela  em " A filha do contador de histórias ".
  Estou lendo, já há mais tempo, devagar como quem vai aos poucos se reconhecendo dentro das páginas, um outro livro também cheio de histórias, mitos e arquétipos e que estou adorando ler. Eu bem podia tê-lo escrito, com tanta coisa ali semelhante ao que penso, ou senti, ou ainda sinto, ou reconheço! Poderia, se tivesse a formação desta psicóloga e me dedicasse,como ela fez, ao cuidadoso estudo e cansativo trabalho de concatenar as palavras corretas, na sequência ideal para falar sobre emoções, psiquê e alma, com tanta propriedade como ela fez, de um modo que fica tão mais fácil de compreender do que outros livros com o mesmo tema. Não é pra qualquer um. Ela fala também de mitos e contadoras de histórias que, sob a interpretação e visão dela, transformam-se em símbolos e ferramentas que nos ajudam a compreender um mundo que nem sempre é de fácil compreensão. Ao contrário do outro livro, me reconheci nele, me reencontrei em alguns momentos e percebo que decidi penetrar suas páginas no momento certo, exatamente logo após ter aprendido o sentido de muitos conhecimentos que a autora compartilha conosco, ali. O livro " Mulheres que correm com os lobos" é muito bom, nos ajuda a sentir mais do que pensar, e nos apoia para que não nos deixemos mutilar de nossas melhores e mais raras qualidades, só porque nem sempre são as reconhecidas, como nossa intuição e força protetora que surge quando algo põe em perigo a segurança de nossos filhotes, de nosso companheiro, ou dos que pertençam a nossa "turma"! Num mundo que está se tornando frio, mortalmente insensível e inconcebivelmente individualista, este livro é atual, embora não tenha sido escrito recentemente. Nele a gente se vê no espelho e sente orgulho de não ter desistido, e deixa a vergonha de lado em relação aos ataques decididos que aprendeu serem necessários nos momentos de sobrevivência da vida ( interior ou física), ou da necessária resistência silenciosa, algo que muitos hoje confundem com simples comodismo!! A autora fala de como é perfeitamente normal que tenhamos "fome" e assim sendo, um dia sintamos urgência  de encontrar alguém da "nossa turma", que possa nos reconhecer, aqueles que falarão nossa linguagem e nos oferecerão do alimento que precisamos para vicejar, porque compreendem o gosto e necessidade do mesmo alimento! Ao ler este capítulo lembrei-me de alguns posts onde eu repetia e repetia as histórias de fomes e sedes que levam pessoas a buscar por uma fonte dentro de seu mundo, ou fora dele.
Ela fala também de como esta mesma "fome" pode levar-nos a cair nas mesmas arapucas! É preciso bom humor para ler sobre isto, para podermos sorrir ao lembrar, se for o caso, dos nossos próprios percalços do caminho, e com certeza ler não nos fará sábios, contudo penso que sempre nos relembra o sentimento de compaixão, o que nos faz mais humanos. O livro é de Clarissa Pinkola Estés, e o recomendo aos homens também, pois ajuda a compreender o que é mais natural na vida e como ela seria mais rica se pudéssemos, homem e mulher, caminhar como amigos que complementam suas forças, ao invés de competir .
  Fico pensando como é maravilhoso que eu possa enxergar, para ler e ver o mundo através de outros olhares, e depois possa sentí-lo através da minha própria visão interior. E o interessante é que, no primeiro livro, apesar da cultura tão diferente da nossa, percebemos coisas que todas as mulheres tem em comum, como o cuidado com seus filhos, ou sofrem em comum, como a incompreensão e desrespeito aos seus direitos e sentimentos, mesmo embora cada uma demonstre de maneira diferente, pois que estamos todos, de certo modo, um pouco engessados dentro do que nossa cultura "permite".
  Me sinto grata por poder, a esta altura da vida, ainda ler com meus próprios olhos, aprender e refletir sobre um mundo que é tão grande e diversificado, e que ao mesmo tempo tem tantos pequeninos pontos em comum.
  Não sei mais se o ideal é tão simples como o desejar menos preconceito no mundo e mais respeito pelas diferenças, pois que aí vejo o perigo de que tudo então, deveria ser aceito!? Tenho preconceito contra um pensamento que vê a importância da mulher só pelo número de filhos que ela possa parir, ou que lhe corte o clitóris num ritual em nome de não sei que crença que pensem ser justificável. Não ter preconceito seria aceitar tudo isto, como se justo fosse? Ou pensar que nossa cultura é superior? Pois neste ponto acho que sim, mas em outros sabemos que não. Estamos todos caminhando no deserto, em busca de um oásis, ou de provar que os nossos heróis são verdadeiros, e mesmo assim, caímos e nos esfolamos, aqui e ali, e quase morremos de sede mesmo não estando usando a burca. Quem julgaria o que é justo? Por certo não seria nenhuma religião, no sentido em que elas se proliferam hoje em dia. Que tivéssemos, cada vez maior compatibilidades e mais respeito à humanidade que é o que nos distingue dos animais e poderia nos unir, apesar das diferenças, isto sim, seria bom. Sabemos que não é fácil apresentar soluções, nem para os que estão no campo de batalha, nem para os que a vêem através de vidros blindados. O que nos resta é aprender, refletir e transmitir "aos nossos", aos que estão sob nossa responsabilidade, o respeito aos direitos humanos, à humanidade, e a extrema necessidade de agirmos de modo coerente sempre que possível, a cada oportunidade no nosso entorno, para ampliar este conceito como coisa viva que possa se multiplicar, como pasto verde no campo, ou cardume de peixes nos rios, para alimentar todos os famintos.

Texto e foto: Vera Alvarenga.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Quando quero me aconchegar...

  Tenho uma característica, não sei se indica um ponto fraco ou se é apenas natural, algo que faz parte de mim...
  Tem dias em que tudo está bem e então, a calma em mim se faz, e me sinto assim, como um inseto que procura mel.
 Então, me sinto atraída por você.
 E como a abelha que vai em busca do néctar e se deixa envolver pelo abraço das pétalas, me dá vontade de me aconchegar.
 É uma característica de minha natureza, que me faz pensar em você, não por estar me sentindo triste ou só, mas por uma docilidade que toma conta de mim.
 Isto me lembra uma vez que vi este casal de leões.
Tranquilos, aconchegados em seu momento de relaxamento, a fêmea com a cabeça apoiada nele, que dormia.
  Ela só não pode relaxar também porque uma porção de garotos de uma escola, intrusos como eu, se acercaram de seu momento de docilidade.

 Às vezes, eu me sinto assim, como a natureza que quer descansar em paz e em pares...


Como é bom quando nos sentimos assim, e podemos nos entregar a estes momentos de
preguiça, de calma, de aconchego, de carinho,
de paz, de ternura...

Que nos adoça a alma, acalma, repõe energias,
nos equilibra, nos flexibiliza...

Como seria bom que nada impedisse o desejo de ainda sermos naturais, como as abelhas que naturalmente procuram e encontram o néctar,
no abraço das flores...




Texto e fotos: Vera Alvarenga

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Reencontrando o filho perdido...

Feriado. Tomamos café bem tarde.
- Vamos ao Zoológico? Queria tirar umas fotos bonitas, de patos na água..faz mais de 25 anos que fui lá quando os meninos eram pequeninos..
- Programa de índio... disse meu marido, mas concordou. E fomos! Chegamos rápido perto de onde os carros começaram a tartarugar, em fila indiana. Demoramos o mesmo tempo para chegarmos até o portão e lá desistimos,sem nem sair do carro. Tinha fila para entrar!
Tive de reconhecer...programa de índio o meu!
Então fomos almoçar num restaurante que ele almoçava há 25 anos atrás, no Ipiranga.
- Vamos passar no Parque da Aclimação? Quem sabe tem um lindo lago lá.. com patos.. a gente caminha um pouquinho só e vamos pra casa!
Estava no caminho. Fomos. Logo, decepcionada,vi que não tinha fotos como eu gostaria para tirar, nem patos na água, o que estou fazendo aqui?
Então vimos um garotinho, andando devagar e cansado, cabeça baixa, chorando. Nós o paramos.
- Perdi minha mãe! (coitadinho! )
Conversamos um pouco, contamos que íamos ajudá-lo e que não deveríamos sair dali, pois a mãe logo chegaria. Um menino lindo, de 4 anos. Disse o nome da mãe, endereço. Estava com o irmão, o primo e se perdera de todos. A mãe demorava a chegar. Comecei a brincar com ele e meu marido chamou o 190. Dei-lhe água, coloquei-o de pé sobre um banco.
- Melhor pra sua mãe te enxergar. Ela já vai chegar, você vai ver.
Um homem com o filho da mesma idade comentou, indignado, ao saber que tinha se perdido da mãe:
- Como pode uma coisa destas? Que absurdo!
- Ah, pode sim! Quem já não perdeu um filho, por um segundo, no shopping, quando há mais filhos ali também? São uns serelepes, estes filhotes! ou dentro de uma loja, quando ele se enfia no meio das araras de roupas só enquanto você piscou? ou na praia ? Meu filho de 2 anos perdeu-se na praia, no meio de um mundaréu de gente, uma vez. Pensei que estava com o pai. Eu grávida, fui pra um lado, meu marido pra outro e o vi, no colo de uma mulher vestida não em traje de banho, que o levava em direção ao calçadão. Meus pêlos ficaram ouriçados. Eu lembro que corri e o peguei, não gostei da cara dela, mas agradeci muito feliz por encontrá-lo. Graças a Deus naquele dia fui na direção certa!
A polícia chegou. Logo perguntaram se ele sabia o celular da mãe. Não, não sabia. Então, ela chegou. Que linda mãe, de um lindo filho e que bom sermos testemunhas deste feliz reencontro!
Bem, valeu por este momento, por esta foto! Depois até tirei poucas de algumas árvores...mas, por este momento é que estávamos ali!
 Voltamos pra casa mais leves por presenciar um reencontro, algo sempre maravilhoso em se tratando de mães ( ou pais) e filhos, não é?

Deus abençõe você, mamãe Julie e você Lucas!( aliás a toda família!)
E, quem sabe devamos ensinar aos nossos pequeninos o número do celular da mãe, e também a pedirem ajuda, mas a não sair do lugar até que mamãe chegue, ou papai, ou polícia... ou quem sabe apenas podemos rezar para o anjo da guarda deles...
Texto e fotos: Vera Alvarenga.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O lobo solitário...


Ele tinha a impulsividade e ousadia dos líderes e dos grandes de sua raça, filho que era de um lobo enorme e pesado, porém a natureza o fez pequeno como sua mãe. E como ela, era corajoso. Com seu tamanho, força e poder desta forma restritos, precisava conformar-se, muitas vezes, com limites a ele impostos desde pequeno. Cresceu assim nesta contradição, onde grandeza de impetuosidade e coragem estavam contidas numa pele que não conseguia esticar ao dobro do tamanho, o que lhe seria, por certo, mais conveniente.Talvez por isto, desenvolveu-se nele o desejo de poder nem sempre adequado à sua realidade.Superou os desafios possíveis e acostumou-se a afastar-se daquilo que não podia conseguir, após várias tentativas mal sucedidas.
  Em sua índole havia um quê de docilidade escondida em segredo, herdada ou adquirida não se sabe exatamente de quem,que aparecia algumas vezes, quando seguro na intimidade de sua caverna. Apesar disto, o espírito brincalhão e galhofeiro era a característica mais visível, além da total falta de tato para uma convivência diplomática mais bem sucedida, mesmo entre os que pretenderia liderar. Embora seu espírito livre e individualista combinasse mais com uma vida sem comprometimentos emocionais, encantou-se com uma fêmea de terras distantes e com ela, a partir daí formou sua matilha, na qual ela cuidava para que tivessem como base padrões um pouco diferentes daqueles que ele viveu na infância. Permitia que ela o fizesse porque o resultado parecia-lhe bom. Contudo, se orgulhava mesmo era de ser o provedor dos seus, oferecendo-lhes o conforto, alimento e segurança possíveis.
  Tudo corria normalmente bem, até que começou a ter de enfrentar sério problema - os seus instintos, por vezes incontroláveis. Sua fêmea, alegre, curiosa e dedicada, era também quieta, sensual e demonstrava certa insegurança que, ao mesmo tempo que lhe agradava bastante,  por outro lado, o lembrava da aparência dócil e frágil das ovelhas. Aí estava o problema! Assim, ele vivia com sua loba, tendo que lutar batalhas consigo mesmo, pois seus olhos a confundiam com ovelhas, seu instinto predador acostumado a atacar o que fosse vulnerável precisava ser contido e ele, não gostava disto. Atacar e vencer o fazia sentir-se poderoso ao mesmo tempo que o forçava reconhecer que seu instinto incontrolável lhe trazia problemas - sua fêmea, aquela que ele amava, tinha agora no olhar certa desconfiança e aprendera a atacar, o que a tornava menos singular, mais semelhante aquelas que ele conhecera em sua vida em outras alcatéias. Ele precisava ser seu próprio caçador, precisava controlar seu próprio instinto predador, ou se fecharia em si mesmo, na pele de lobo solitário...
Texto:  Vera Alvarenga
foto: retirada do imagens.com (no Google imagens) 

sábado, 21 de janeiro de 2012

A pastora e o predador em seu quintal...

  Havia uma mulher, não sei que idade tinha, ingênua e pouco experiente que um dia, apaixonada, casou-se com um homem corajoso e determinado. Pensava que em companhia dele teria, ela também, coragem para conhecer sobre o mundo e seus arredores. Ao contrário disto, ele a convenceu de que o melhor para ela seria que vivesse no campo, cuidando de suas dóceis ovelhas, nunca ultrapassando os limites de sua pequena aldeia, estando assim protegida de todo o mal. Apesar do trabalho intenso ela era feliz e se distraía com sua mente curiosa e criativa.Tornou-se uma tranquila pastora, embora nas noites de lua cheia, como suas ovelhas, sentisse certo desconforto. Os anos passaram e ela ficou um pouco doente. Nada de importante, apenas sua energia diminuía após cada tempestade, e então ficava triste porque sentia-se um tanto isolada, embora naquele mesmo lugar que lhe dava segurança.
Mais tempo passou. O rebanho aumentara e ela estava sempre ocupada com sua criação. À uma parte da vida do marido, tinha pouco acesso. Nas noites que precediam tempestades, as dóceis ovelhas agitavam-se. E eram nestas noites que ele se ausentava ou chegava tarde, mas lhe dizia que ela não deveria perguntar onde estivera. Curiosa como era, não se conformava, pois exatamente nestas noites ela tinha de ser mais corajosa para tentar proteger as ovelhas e tudo que era valioso de algo que nem mesmo sabia o que era,mas sua intuição dizia que não era bom. Insistia para que ele a convidasse para divertirem-se à noite, seria uma boa maneira de sair de sua rotina solitária. Ele se aborrecia, não a queria no mundo, só para ele. Um dia ela notou que algo estranho ocorria a cada vez que ele se fechava para ela - ao contar suas ovelhas após estes episódios, percebia que seu número ia diminuindo. O tempo continuava a passar e seu rebanho de alegres ovelhas diminuía...
  Até o dia em que ela resolveu penetrar na noite, com uma lanterna, e ver o que ocorria. O que ela viu, ninguém sabe exatamente, mesmo porque não teve coragem para acender a lanterna. Mas conta-se que viu! Mesmo à luz do luar, viu o marido transformado em um estranho e peludo animal, que reconheceu como um devorador de ovelhas. Qual susto levou ao enxergar que, aquele homem quase sempre bom e honesto, nas noites de lua cheia que precediam tempestades, por alguma ansiedade de seus instintos transformava-se em um predador! Mas ele não se afastava, atacava apenas as meigas ovelhas que ela pensava manter protegidas na tranquilidade de seu quintal ( ou seriam, as ovelhas, inocências que habitavam o íntimo de sua alma?). Depois disto, e por um tempo, encolheu-se na segurança de sua casa e sonolenta, naquelas noites, esperava a tempestade passar, até que quase todo seu rebanho foi dizimado. Junto com o rebanho, ela também enfraquecia, sentia-se vazia, sentia-se morrer.
  Então numa noite, inspirada novamente pelo ciclo de vida-morte-renascimento em seu quintal, ao ver algumas de suas ovelhas com suas crias recém nascidas, encheu-se de coragem e decidiu enfrentar seja lá o que fosse aquilo em que seu marido se transformava.  Armou-se, trancou-se com elas em casa, ficando desta vez, com os olhos bem abertos, de prontidão para revidar qualquer ataque às ovelhas, com unhas e dentes. Assim o fez durante algum tempo, quando ele vinha e de um modo ou outro, tentava enfraquecê-la com seu jeito traiçoeiro de animal predador, que nunca antes encontrara limites. Ela, de início ficou apenas na defesa. Ora temia atacá-lo e não ter coragem de enfrentar as consequências, ora receava ser injusta. Ainda temia que aquela incompreensível maldição pudesse passar para ela, devido ao ferimento que ele lhe causara quando uma vez lhe atingiu com a pata, ao tentar atacar uma de suas frágeis ovelhas. Sim, ela viu o arrependimento nos olhos dele e também seu estranho amor. Mas estava ferida. Seria contagioso? Não queria que acontecesse com ela o mesmo que ocorria com ele. Poderia viver sem ele ou teria de encontrar uma maneira de apenas controlar aqueles eventos que se tornavam mais frequentes, porém menos assustadores depois que ousou manter as luzes acesas, durante aquelas noites?
  Uma noite, porém, sentia-se tão cansada que pensou desistir. Foi neste instante, em que vacilava mais uma vez, que as fêmeas do rebanho se juntaram perto da porta para protegê-la, como se por instinto, soubessem que era isto que deveriam fazer. E como tomada pela energia de todas as ovelhas gentis mas acuadas, ela reagiu. Não ia mais culpar-se por mostrar sua força, nem sentir-se mal por carregar em si sua coragem, e o enfrentou. Junto com a força instintiva das fêmeas que vieram antes dela, ela o enfrentou. E por amor a si e até mesmo ao homem que ele era quando não estava sob o feitiço das noites de insegurança de suas próprias tempestades, ela o empurrava para um quarto escuro e lá o trancava, já que ele não podia controlar seus impulsos de predador, impedindo-o de agir sôbre elas, as frágeis ovelhas que viviam ainda em seu quintal.
  Assim, salvou as meigas ovelhas que lhe sobraram com a esperança de que multiplicassem. Dizem que ela não é mais ingênua como antes, suas ovelhas não são mais tão dóceis, contudo as pessoas vêem os dois, ainda por aí, quando o tempo está bom, andando de mãos dadas, como um casal amoroso que convive bem... e então, ela é feliz...
  Conta-se também, não sei se é verdade, nem quero dizer em voz alta mas, dizem que nas noites de lua cheia, quando começa o ouvir os trovões de uma tempestade que se aproxima, imediatamente ela se transforma, e nas suas patas, digo, mãos, crescem pêlos!!
Texto: Vera Alvarenga
foto da pintura de Annita Catarina Malfatti - 1955 - Pastora e Ovelha
retirado do site catálogodasartes.com.br 
Técnica : Óleo sobre madeira
Dim. : 60 x 54,5 cm

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